A convivência nada pacífica entre carga e passageiros é parte do problema do transporte ferroviário.
Desde o início das concessões iniciadas em 1996 os passageiros foram como que descartados, o que fez com que os problemas deixassem de ser momentâneos para fazerem parte das perspectivas nada promissoras do futuro.
O transporte ferroviário que se estabeleceu desde então foi o heavy haul (grandes volumes, homogeneidade de carga e alta tecnologia entre origem e destino).
A carga geral, que tradicionalmente era transportada nos vagões dos Correios e integrada aos trens de passageiros, deixou esse modal.
Os ganhos e perdas do transporte de correspondências e encomendas passaram a ser feitos sobre pneus (ônibus e caminhões).
A rapidez consolidou o transporte rodoviário de cargas e passageiros.
Entretanto, a questão que se impõe é o que fazer com os milhares de quilômetros de trilhos e de estações ferroviárias existentes.
De um lado, diversas cidades se formaram pela própria ferrovia; de outro, a realidade evidenciada é a de que o transporte porta-a-porta é rodoviário. Essa tendência não é privilégio do Brasil e está consolidada mundo afora.
Nos Estados Unidos e na Europa os trilhos das ferrovias secundárias (aquelas que não integram as linhas heavy haul) integram mais de 2 mil novas organizações que se formaram para aproveitar os trilhos e a infraestrutura implantadas.
Essa apropriação dos trilhos e da infra hoje se enquadra na categoria de short lines, denominação que caracteriza empresas privadas que empreendem pequenos negócios, capazes de se sustentar longe do governo e da gestão pública, e que geram lucros ao alimentar as heavy haul ou explorar o potencial regional de produção, de turismo e de negócios, os mais criativos de que se tem notícia na área de transportes ao turismo.
No Brasil estamos na encruzilhada, na qual se decide integrar os trilhos que não interessam para as concessionárias heavy haul e tornar esses trilhos lucrativos com cargas e passageiros.
Nada será fácil, mas nos próximos dias (semanas, mês) essa questão certamente será rediscutida e, quem sabe, equacionada.
O mundo já decidiu que esse é o caminho, mas aqui no Brasil teremos que encorajar e incentivar o segmento empresarial a participar disso.
O roubo de cargas, o encarecimento do transporte por perdas de produtividade provocadas pelos engarrafamentos na chegada das grandes cidades e por desafios do e-commerce que exigem prazos e custos competitivos permitem colocar em pauta a eventual retomada dos trilhos com propostas para aproveitá-los para integrar as cidades, as cargas e a economia das regiões.
As vantagens disso estão no fato de que as ferrovias chegam ao centro das grandes cidades.
As desvantagens são os elevados investimentos para o transporte ferroviário, que dependem (quase sempre) de uma interação, entre os capitais públicos e privados.
O transporte rodoviário de cargas e de passageiros deveria ser atraído para o equacionamento dessa questão.
A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e a CNT (Confederação Nacional do Transporte) são organismos reconhecidamente competentes para apoiar essa discussão.
As associações e entidades podem ajudar trazendo esse tema para a pauta dos congressos, seminários e para ampliar as discussões entre os segmentos econômicos capazes de ocupar essas posições no cenário da economia do País.
A convergência entre os desafios de capitais e tecnologias pode trazer contribuições para uma nova realidade do transporte sobre trilhos.
Acredito que os trilhos sejam parte da solução para o transporte e o abastecimento das cidades no futuro.
Se não é possível trazer trilhos na porta dos estabelecimentos, quem sabe se consiga pelo menos apoiar a integração ferroviária com os outros modais.
*Paulo Westmann, consultor em tecnologia e transporte, é membro do Comitê Ferroviário do Congresso SAE BRASIL 2017
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